sábado, 21 de abril de 2012

O Animal


 
         A porta do bar se abre em um estrondo, atrapalhando a música. Todos olham se perguntando "Quem ousa...". O pensamento é interrompido pelo estranhamento da figura que acaba de entrar. Botas e couro e cano alto, para evitar mordidas de cobras (apesar de já ter levado algumas). Um sobretudo mais escuro do que era originalmente e encharcado pelo temporal. O chapéu...o chapéu tem parte da aba faltando, como se um bicho (ou um homem?) tivesse arrancado com os dentes. Seu chapéu continha suas coisas mais preciosas: um resto de tabaco (preso na faixa), uma passagem de trem velha (escondida no interior) e sua cabeça. Ele nunca carregava armas com si, "É mau agouro". Tudo o que ele precisasse para se defender estaria no ambiente, sejam armas ou não.
         Caminhava sem pressa até o bar, roçando a barba longa e recém-aparada. Alguns comentários indistinguíveis podem ser ouvidos pelo local, enquanto o movimento volta ao normal.
         Ele pede uma soda limonada ao bartender e dá o primeiro gole como se nunca tivesse tomado soda na vida. Aprecia cada segundo que a bebida desce pela sua goela. Coloca a bebida no balcão, pega um cubo de gelo e olha com admiração, fascínio e repulsa para os casais que dançam a sua volta ao som de um velho CD de música caipira qualquer.
         Suas mãos estão tão ásperas e gastas que sua sensibilidade ao tato já não existe mais. Mas mesmo assim ele se diverte ao segurar um cubo de gelo até ele derreter.
         Uma menina de tranças que mal saiu da puberdade chega pululante até a estranha figura para tirar-lhe para dançar. Ele recusa dando um sorrisinho sem graça, mas sem dizer nenhuma palavra. Ela tenta insistir por educação, mas volta rapidamente para a rodinha de garotas iguais à ela.
         "O sinhô veio numa noite boa, a gente acabou de comprar um aparelho de som importado do Paraguai, coisa boa." - O bartender tenta fracassadamente uma conversa. O homem vira pra ele e o fita nos olhos. Seus olhos lhe dão o dobro da idade que ele realmente tem. Eles parecem ser velhos, sábios e cansados. O homem realmente está muito cansado de pensar. Sem mais uma palavra, o bartender, um tanto temeroso, lhe oferece mais uma soda limonada "por conta da casa".
         Fazia tanto tempo que o homem não ouvia barulhos como aqueles. Murmurinhos, risadas, mentiras, fofocas. É tudo tão plastificado, tão longe de sua realidade. Apesar de quase todas as partes do seu corpo estarem castigadas, sua audição estava impecável. Ele conseguia ouvir tudo, todo o tipo de informação inútil que pairava no lugar. O homem ouvia como uma águia em busca de sua presa.
         Enquanto se entretinha mentalmente com os pequenos teatros que eram encenados no bar, um velho com apenas três dentes veio mancando em sua direção e sentou-se ao seu lado. "Esses moços de hoje em dia não sabem o que é música boa. São todos uns promíscuos…uns promíscuos…", dizia mais para si mesmo que para o homem. De repente ele se vira com certa violência para o velho, e começa a falar como se sentisse culpa.
         "Há alguns anos vivia um moço em São Paulo que era muito parecido com esses. Tinha um trabalho razoável, uma namorada, um apartamento bom. Ele era contente com o que tinha.
         "Um dia, estava atravessando a rua quando o tempo parou. As pessoas ficaram imóveis e o vento não batia mais em sua cara. Ele estava muito intrigado, então foi andar pela cidade. Entrou em uma loja, mas não tinha ninguém lá para explicar o que estava acontecendo. O telefone também estava mudo. Arrobou a porta de muitos carros e muitas casas mas não tinha ninguém, exceto ele. As pessoas que antes estavam na rua, haviam sumido. Ele deitou no meio da rua, desolado. Enquanto olhava para os céus em busca de algum movimento das nuvens, ele vê um urubu preto passando rapidamente. Mal dá tempo de ele perceber que as coisas voltaram a se mexer. Ele ouve o som de um carro tentando desesperadamente frear e apaga.
         "Ninguém sabe ao certo quanto tempo demorou para ele voltar a si. Um dia, talvez dois. Isso não importa. Quando o homem acordou, viu uma figura idêntica a ele cuidando de si. Achou que estivesse alucinando. Ele não tem um irmão, muito menos conhece alguém tão parecido com ele mesmo. O médico começa a falar e sua voz é igual à do homem. Mais alguns homens entram no quarto preocupados com ele. Todos são cópias dele mesmo.
         "Demorou muito tempo para ele conseguir conviver em um mundo em que só tinha ele. Para qualquer lugar que o homem ia, ele estava lá. E apesar de muito parecidos, eles eram muito distintos. Era como se sua personalidade tivesse sido fragmentada em um milhão de pedaços e cada uma criado seu próprio corpo e os únicos seres que não eram ele eram os muitos pastores alemães que rondavam a cidade. No começo, ele tinha certeza de que era o único homem completo, e não apenas um fragmento. Mas essa segurança foi se destruindo um pouco mais a cada dia, pois todos eles tinham a mesma certeza. Ele mergulhara em um estado de profunda solidão.
         "O homem conversou com vários deles. Muitos ele nem conhecia. Ouviu sua infância contar anedotas dos dias de sol na praia de Santos com seu pai. Ouviu sua libido contar de todos os seus desejos e fetiches mais obscuros e bizarros. Ouviu seu racional falar que ele devia fazer a coisa certa e ir embora daquele lugar. E ele decidiu seguir o conselho do seu lado racional.
         "Fez as malas com tudo o que ele precisaria e pegou um trem para o lugar mais longe e isolado que conseguiu achar. Ele dormiu a viagem inteira. Quando acordou, não viu ninguém no trem. Todos ele mesmos não estavam mais lá. A estação de trem era dentro do que ele descobriria ser uma montanha. Quando ele saiu de lá, sem rumo certo, decidiu subir a montanha. A escalada não foi difícil, mas quando o homem chegou ao topo, viu uma floresta com árvores de seis metros de altura que se estendia pelo local. Ele vasculhou aquele arvoredo por dias, tardes e noites e um dia, tão cansado que não conseguia nem chorar, achou uma cabana de madeira abandonada.
         "A cabana não tinha cômodos, móveis ou facilidades. Tinha apenas uma poltrona vermelha de veludo, mofada. Apesar disso, se sentiu em casa instantaneamente. Engraçado como o homem, longe de tudo que lhe é familiar, se sente tão à vontade quando encontra algo que assimile com sua realidade."
         O homem fez uma longa pausa na história como se tentasse lembrar inutilmente dos detalhes.
         "Ele fez da cabana sua casa por um período de tempo muito longo. Se alimentava com os frutos das árvores, que demoravam a cair, mas caíam todos os dias pela manhã em seu enorme quintal. No começo, caçou com muita dificuldade alguns veados, mas depois percebeu que conseguia se alimentar perfeitamente com a enorme variedade de frutas que despencavam das árvores. Aprendeu a beber e recolher a água da chuva, que vinha sempre ao fim da tarde. Desenvolveu um método para se defender das cobras e aranhas e outros bichos venenosos que infestavam o local em horas inesperadas. Mesmo estando solitário, se sentia menos sozinho do que quando estava na cidade.
         "O homem foi conquistando seu lugar naquela natureza, até o momento que ele estava tão incluído no ciclo natural que tinha a impressão que se ele saísse, tudo pararia de funcionar harmoniosamente. Não usava nem mais sua faca, ela tinha virado um instrumento inútil. Ele não pensava mais com a cabeça, e sim com cada parte do seu corpo. Cada membro de seu corpo estava vigorosamente ativo e respondia às influências a sua volta. Ele sentia tudo com muita intensidade, como se nunca tivesse sentido antes.
         "Uma manhã, ao acordar, saiu para recolher os frutos. Porém, só tinha caído uma grande carambola longe da cabana. O homem estranhou a ausência da fartura usual, e, ao se direcionar para pegar a carambola, fui surpreendido por um enorme urubu preto que a pegou antes dele. Os dois animais se fitaram com um olhar de ódio, compreensão e competição. E então, o urubu levantou voo.
         "O homem achava que tinha direito àquela fruta e seguiu o urubu que voava lentamente. Ele foi até o começo da floresta e assistiu a partida da ave, sem coragem de ir atrás. A mesma coisa aconteceu no dia seguinte, com uma goiaba, e no outro, com um morango.
         "Morrendo de fome, ele decidiu que no dia seguinte ele iria brigar com o urubu, custe o que custasse. Ao acordar, avistou uma amora e a ave. Foi se aproximando lentamente, lentamente, lentamente….mas de repente, o urubu saiu voando com a amora e lhe bicou tão forte a cabeça que ele desmaiou. Acordou no fim da tarde com a chuva em sua cara e então, com um impulso estranho, pegou seu sobretudo, colocou o chapéu e desceu a montanha. Enquanto ele descia, ele ia envelhecendo rapidamente. Suas mãos, iam ficando velhas e desgastadas, ele não enxergava bem, rugas começaram a incomodar seu rosto. Andou por o que pareciam ser horas e horas e chegou num vilarejo."
         O homem ficou em silêncio enquanto olhava para suas mãos com uma certa nostalgia.
         "Esse homem é você?" - perguntou o velho.
         "Não."- disse o homem com uma seriedade inesperada - "Eu matei esse homem quando ele entrou no bar."
         Se vira, e pede ao bartender uma cachaça.

3 comentários:

  1. Gostei, é de sua autoria?
    Anda meio sumida... sinto falta dos seus textos, sobretudo sobre cinema...
    Tudo de bom, abraços!

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    1. É sim, Jamil. Ando meio sem tesão para escrever há bastante tempo, mas volta e meia eu venho com um texto novo.

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  2. Entendo, volta e meia acontece isso comigo também.
    Ainda que a vontade de escrever nem sempre esteja presente, espero que boas inspirações nunca lhe faltem.
    De um leitor fiel e entusiasta do seu blog. : )

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