Cheguei
no número 520 da rua Jaceguai (no Bixiga) por volta das 16 horas. Tinha ouvido
falar muitas coisas da peça, a maioria polêmicas, mas queria ver com meus
próprios olhos. Atravessamos o teatro e fomos levados à tenda circense no fundo
do terreno. Uma música bem diferente tocava ao fundo enquanto a plateia tomava
seu lugar. Os atores vestiam capas de plástico translúcidas por cima de roupas
beges e as mulheres tinham maquiagens muito chamativas com pétalas coladas ao
redor dos olhos. Entra em cena então o grande criador por trás da coisa toda,
José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, que apesar dos seus 70 e poucos anos,
continua fazendo exatamente a mesma coisa que há décadas atrás: cutucando
políticos, quebrando tabus e polemizando.
Depois
de uma introdução divertida em que pudemos vaiar ou aplaudir os apoiadores e
patrocinadores, os atores do Uzyna Uzona levam todo mundo numa "cobra
grande" pelo Bixiga com músicas originais cantadas por eles. Vamos até o
TBC buscar Cacilda Becker, que encarna Tarsila do Amaral e depois até o
apartamento que Oswald de Andrade morou, onde ele toma um leite de cabra e sai
com Tarsila. Continuamos pelo Bixiga até voltar para o terreno do teatro, onde
Tarsila e Oswald dão a introdução para o "mundo antropofágico" que vem
pela frente. Depois de tomar absinto e comer rãs fritas (que parecem
mulherzinhas), o casal se despe e, de volta ao circo, seu sexo evoca os índios
que vão caçar Oswald de Andrade para comê-lo.
A
peça continua com figuras como Macunaíma, Levy-Bruhl, Freud, Iracema, Rômulo
e Remo, Obama, Papa Bento XVI, Amy Winehouse e até Deus. Como se fosse uma
espécie de vaudeville antropofágico (no
sentido cultural, com raízes no Manifesto de Oswald de Andrade), inúmeras cenas
da história do mundo, do Brasil e até da vida pessoal dos membros do Teatro
Oficina se misturam, resultando em uma peça crítica, divertida e "sem pé
nem cabeça". Aliás, com pé e cabeça, mas não no lugar que deveriam estar.
A
parte mais polêmica e mais falada, é sem dúvidas quando os atores que já
estavam semi-nus fantasiados de índios "descobrem" que as roupas são
o que nos impede de entrar em contato com o mundo externo, então ficam
totalmente nus e convidam quem quiser da plateia para fazer o mesmo. Confesso
que a princípio pode parecer meio estranho, mas aos poucos você vai se
acostumando com a ideia e não fica mais desviando os olhos por vergonha ou
culpa. Na verdade, você começa a aceitar esse estado tão vulnerável e achar até
as pessoas mais bonitas.
O
intervalo de 20 minutos é desnecessário, apesar da peça ter 5 horas. Todo mundo
entra no mundo antropófago de Zé Celso e não sai de lá até o fim da peça.
Porém, é muito agradável poder beber um vinho com um pessoal que você já sente
intimidade sem nem precisar ter trocado uma palavra. "Macumba
Antropófaga" continua no mesmo ritmo que antes, sem perder o interesse de
quem assiste um segundo.
Apesar
do Teatro Oficina ser "comandado" por um homem que fazia sua arte
desde a época da Ditadura Militar e de abordar temas modernistas, ele não fica
ultrapassado. Pelo contrário, ele é muito atual e político. Tanto que uma hora
os espectadores são convidados a tuitar para ajudar o Oficina em sua luta para construir
um teatro de estádio.
Me
encantei com a peça, desde a sua construção até o trabalho admirável dos
atores. A longa história do povo brasileiro, de todas as culturas que
"engolimos" e tornamos parte da nossa, é contada de maneira especial
por esses artistas, que sempre repetem que "só a antropofagia nos
une".