segunda-feira, 28 de maio de 2012

A Macumba Urbana



           Cheguei no número 520 da rua Jaceguai (no Bixiga) por volta das 16 horas. Tinha ouvido falar muitas coisas da peça, a maioria polêmicas, mas queria ver com meus próprios olhos. Atravessamos o teatro e fomos levados à tenda circense no fundo do terreno. Uma música bem diferente tocava ao fundo enquanto a plateia tomava seu lugar. Os atores vestiam capas de plástico translúcidas por cima de roupas beges e as mulheres tinham maquiagens muito chamativas com pétalas coladas ao redor dos olhos. Entra em cena então o grande criador por trás da coisa toda, José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, que apesar dos seus 70 e poucos anos, continua fazendo exatamente a mesma coisa que há décadas atrás: cutucando políticos, quebrando tabus e polemizando.
            Depois de uma introdução divertida em que pudemos vaiar ou aplaudir os apoiadores e patrocinadores, os atores do Uzyna Uzona levam todo mundo numa "cobra grande" pelo Bixiga com músicas originais cantadas por eles. Vamos até o TBC buscar Cacilda Becker, que encarna Tarsila do Amaral e depois até o apartamento que Oswald de Andrade morou, onde ele toma um leite de cabra e sai com Tarsila. Continuamos pelo Bixiga até voltar para o terreno do teatro, onde Tarsila e Oswald dão a introdução para o "mundo antropofágico" que vem pela frente. Depois de tomar absinto e comer rãs fritas (que parecem mulherzinhas), o casal se despe e, de volta ao circo, seu sexo evoca os índios que vão caçar Oswald de Andrade para comê-lo.
            A peça continua com figuras como Macunaíma, Levy-Bruhl, Freud, Iracema, Rômulo e Remo, Obama, Papa Bento XVI, Amy Winehouse e até Deus. Como se fosse uma espécie de vaudeville antropofágico (no sentido cultural, com raízes no Manifesto de Oswald de Andrade), inúmeras cenas da história do mundo, do Brasil e até da vida pessoal dos membros do Teatro Oficina se misturam, resultando em uma peça crítica, divertida e "sem pé nem cabeça". Aliás, com pé e cabeça, mas não no lugar que deveriam estar.
            A parte mais polêmica e mais falada, é sem dúvidas quando os atores que já estavam semi-nus fantasiados de índios "descobrem" que as roupas são o que nos impede de entrar em contato com o mundo externo, então ficam totalmente nus e convidam quem quiser da plateia para fazer o mesmo. Confesso que a princípio pode parecer meio estranho, mas aos poucos você vai se acostumando com a ideia e não fica mais desviando os olhos por vergonha ou culpa. Na verdade, você começa a aceitar esse estado tão vulnerável e achar até as pessoas mais bonitas.
            O intervalo de 20 minutos é desnecessário, apesar da peça ter 5 horas. Todo mundo entra no mundo antropófago de Zé Celso e não sai de lá até o fim da peça. Porém, é muito agradável poder beber um vinho com um pessoal que você já sente intimidade sem nem precisar ter trocado uma palavra. "Macumba Antropófaga" continua no mesmo ritmo que antes, sem perder o interesse de quem assiste um segundo.
            Apesar do Teatro Oficina ser "comandado" por um homem que fazia sua arte desde a época da Ditadura Militar e de abordar temas modernistas, ele não fica ultrapassado. Pelo contrário, ele é muito atual e político. Tanto que uma hora os espectadores são convidados a tuitar para ajudar o Oficina em sua luta para construir um teatro de estádio.
            Me encantei com a peça, desde a sua construção até o trabalho admirável dos atores. A longa história do povo brasileiro, de todas as culturas que "engolimos" e tornamos parte da nossa, é contada de maneira especial por esses artistas, que sempre repetem que "só a antropofagia nos une".