segunda-feira, 22 de abril de 2013

Três Tigres Extremos - uma análise de "Um Bonde Chamado Desejo"


"Na primeira vez que ouvi Streetcar, a impressão não era de que continha frases de efeito ou 'poesia', mas de que a língua fluía da alma. A alma de um escritor, uma voz única quase miraculosamente envolvia o palco. Mas impressionantemente, o discurso de cada personagem parecia ao mesmo tempo especificamente deles, eles pareciam livres para declarar seus egos contraditórios ao invés de ficarem presos à necessidade de contar a história da peça." Esse é o relato do dramaturgo Arthur Miller em relação à primeira produção de A Streetcar Named Desire em 1947.

O autor, Tennessee Williams (1911-1983), era notório por sua peça de grande sucesso The Glass Menagerie (1944). Crescendo em uma família opressiva com uma irmã que foi lobotomizada e sendo homossexual assumido, suas peças costumavam tratar de assuntos considerados tabu para a sociedade da época (e até hoje), como doenças mentais, abuso sexual, o desejo sexual da mulher, o papel da mulher na família, machismo, entre outros. Entre suas obras mais famosas estão: Summer and Smoke (1948), The Rose Tattoo (1951), Cat on a Hot Tin Roof (1955), Suddenly Last Summer (1958), Sweet Bird of Youth (1959), The Night of the Iguana (1961), entre outras. Porém sua peça a mais famosa talvez seja Streetcar Named Desire (1947), que teve a primeira montagem em Nova York dirigida pelo célebre Elia Kazan e lançou a carreira do então jovem Marlon Brando. A dupla seguiu com a história em 1952 para o cinema, juntando Vivien Leigh (de Gone With the Wind (1939) ) ao elenco.

A história começa com Blanche DuBois, uma mulher bem vestida de trinta anos, que desce do bonde chamado Desejo (que realmente existia) no pequeno bairro de Campos Elísios no meio do French Quarter em New Orleans. O lugar é onde residem moradores de classe baixa e o berço do blues e do jazz da Louisiana. Após entrar na casa de sua irmã, Blanche bebe discretamente um copo de whisky enquanto espera Stella voltar. As irmãs são reunidas e Blanche pede para ficar na casa de Stella, que aceita, porém a situação não é totalmente agradável para Blanche: a casa só tem dois cômodos, uma espécie de cozinha com sofá-cama e um quarto, separados apenas por uma cortina. Blanche conta que se demitiu de seu emprego como professora e por algum motivo mal-explicado, acabou perdendo a posse da propriedade da família, a plantation Belle Reve. Então chega Stanely, o marido de Stella, que é um homem bruto, com ótimo físico e "polaco", como é chamado pelas duas mulheres. O primeiro encontro de Stanley com Blanche acontece enquanto Stella está no banheiro e já é altamente perceptível que essas duas personalidades vão colidir, com uma mistura de tensão sexual e briga pelo poder sob Stella. A peça continua com a convivência dos três nessa casa com dois cômodos, com a presença de Mitch, um amigo de Stanley que irá cortejar Blanche, e do passado da mesma, que é mais obscuro do que percebemos no começo da história.

Mitologia grega

Tennessee Williams era um amante da mitologia grega e pode-se dizer que todas suas peças tem alguma referência aos deuses gregos e suas histórias. Aqui, a referência mais clara é a dos Campos Elísios, o último lugar de repouso para as almas dos heróis e homens virtuosos. Porém, Streetcar inteiro pode ser interpretado como uma "batalha de deuses", de personalidades.

Stanley é visto como o deus Dionísio, o deus do vinho, da fertilidade e do teatro. Dionísio (ou Baco) é mais conhecido pela lenda grega das Bacantes, que conta que o deus volta a Tebes, o local onde nasceu, onde pune as mulheres pelo povo não acreditar que ele é um deus. As mulheres de Tebes são de certa forma enfeitiçadas por Dionísio e são inconsequentes por estarem sob seu encanto, causando tragédia na cidade. Além das Bacantes que são mulheres que seguem ele para onde ele for. Isso se relaciona a Stanley pelo fato dele ser um homem extremamente sedutor e poderoso em relação às mulheres a sua volta. Um bom exemplo disso é o fato que mesmo depois de bater em Stella quando está bêbado, ela sempre volta para ele.

Stella é vista como Ártemis, a deusa dos animais e das virgens. Uma guerreira, Ártemis é a imagem da mulher independente, que não precisa nem de um homem e está sempre ajudando os animais, que são indefesos em relação aos humanos. Para mim, Stella é um dos personagens mais interessantes, apesar do fato de que na maior parte das produções, ela é deixada um pouco de lado. Stella é uma mulher forte, que tomou suas próprias decisões e saiu de Belle Reve para ir atrás do homem que amava, apesar dele ser pobre e "comum". Stella quer ajudar sua irmã e as pessoas a sua volta a qualquer custo e tem uma bondade inata.

Blanche talvez seja a mais enigmática de todas, podendo ser vista como um pouco dos dois deuses acima e também como Orfeu, que diz a lenda, tocava canções maravilhosas que encantava a todos, até perder seu grande amor Eurídice, e se isolar da sociedade inconsolável cantando suas canções até ser destruído por um grupo de mênades.

A música

Qualquer um que já ouviu falar de New Orleans sabe que a música é uma importante parte da história da cidade. Em Streetcar isso não é diferente. Williams acreditava em um teatro que misturasse as outras artes, e nos anos 40 não é de se impressionar que o cinema o atraísse tanto. A música nessa peça é constante e quase não se tem um momento de silêncio, o que causa um efeito de "trilha sonora" de filme. A sensação é de que os personagens nunca estão sozinhos e de que tem sempre coisas acontecendo ao redor. A maior parte das músicas são jazz e blues, que são rítmos sensuais, tristes e até mesmo agitados. Porém em algumas partes especiais há uma rubrica que diz "toca a Varsouviana". A Varsouviana é uma polka e toca na peça toda vez que Blanche lembra do seu passado, especialmente do seu ex-marido que se matou, pois era a música que tocava no baile quando isso aconteceu. Começa a ficar mais frequente mais ao fim da peça e indica a loucura de Blanche progredindo. Algo interessante de se pensar é o fato de que a polka é uma música típica polonesa e, como sabemos, Stanley tem ascendência polonesa. Talvez exista uma relação entre Stanley "dominar" a cabeça de Blanche e a frequencia com que a Varsouviana toca.

O Sul dos Estados Unidos e a "Southern Belle"

Para mim, Blanche representa o fim de uma geração do sul dos Estados Unidos. Até a Segunda Guerra Mundial, ainda existia os resquícios de uma geração de donos de plantations, que perderam grande parte de suas terras (e todos os seus escravos) com a Guerra de Secessão. Essa classe social extinta era o mais próximo de uma realeza que os Estados Unidos já tiveram, e todos moravam em casas enormes, as terras eram passadas de pai para filho, as mulheres eram bem vestidas (Southern Belles) e tinham casamentos arranjados com homens ricos, etc.

Os DuBois são uma família com esses ideais que foi perdendo seu prestígio e condição econômica e social. Uma das filhas, Stella, fez algo que começava a ser mais comum na época, mas ainda era mal visto: casou-se por amor e fugiu desse meio. A outra filha, Blanche, continuou com esse sonho de ter uma vida ideal. Porém, a realidade foi mudando e decaindo e, cega à nova realidade, Blanche ainda tinha o desejo de viver entre festas, pérolas e peles de raposa, em um mundo onde os homens são gentlemen e as mulheres são damas, totalmente o contrário de sua condição atual e da vida em New Orleans. Sua famosa frase: "Eu não quero realismo, eu quero magia" descreve perfeitamente seus objetivos (assim como a música que ela cantarola no chuveiro, "Paper Moon").

Não é de se espantar que com esse "baque de realidade", Blanche goste de ouvir músicas românticas e sempre ficar fora da luz (para esconder sua verdadeira idade) e que carregue peles falsas e coroas de bijuteria. A peça inteira ela tenta reviver uma época que já não existe mais e um sonho que ela não pode ter.

O sexo e as mulheres

O grande tema da peça, na minha opinião, é o sexo em suas variadas facetas, mas principalmente o desejo sexual feminino.

A sociedade da época era altamente opressora e era inaceitável que uma mulher admitisse sentir desejo sexual, especialmente se fosse em relação a alguém que ela não estava casada. Uma mulher de 30 anos já era considerada velha, e se não estivesse casada, era provável que nunca se casasse. Nesse contexto temos Blanche, uma mulher "de família" que era muito bonita e foi casada uma vez quando era jovem com um garoto que se revelou homossexual e se matou por causa disso. Com o passar dos anos, ela foi tendo encontros "secretos" com homens em um hotel chamado Flamingo e eventualmente teve um caso com um aluno seu, o que resultou na sua expulsão da escola e em muitos rumores sendo espalhados a seu respeito na sua cidade, Laurel. As razões que levaram-na a levar uma vida promíscua podem ser muitas, mas na minha interpretação, a maior razão é o medo (talvez inconsciente) de estar ficando velha e de parar de se sentir desejada pelos homens por causa disso e sua eterna carência.

As duas irmãs são pessoas altamente libidinosas, porém sua atitude e julgamento em relação ao próprio desejo são bem diferentes. Aliás, a própria palavra "desejo" toma diferentes significados durante a peça. Stella dá-se muito bem com isso e aparentemente não tem pudores. Está casada com um homem "macho" e com uma força sexual e atrativa muito fortes e deixa o espectador até questionando se o sexo não é o principal motivo pelo qual ela sempre volta para Stanley, mesmo com ele abusando dela e sendo rude. Isso pode ser visto na notória cena em que Stanley bate em Stella, ela foge com Blanche para o apartamento de cima, ele desesperado vai atrás dela e grita o famoso "Stella! Stella!" e ela volta para ele. Blanche vai atrás da irmã, vê os dois fazendo sexo e volta para o apartamento da vizinha. No dia seguinte, Blanche e Stella discutem enquanto Stella está na cama depois de uma noite intensa, e a primeira tenta convencer a irmã de que ela está numa situação horrível e que precisa ir embora e Stella responde que "Eu não estou em nenhuma situação da qual eu queira cair fora." Mesmo assim, Blanche não entende a atração cega da irmã por Stanley, e ocorre um dos diálogos mais significativos, simbólicos, metafóricos e poéticos da peça:

STELLA - Mas existem coisas que acontecem entre um homem e uma mulher no escuro...que meio que fazem tudo o mais parecer...sem importância.
 BLANCHE - Você está falando é de desejo animal...e só...Desejo!...nome daquele bonde desconjuntado, barulhento, o nome daquele ferro-velho que passa sacolejando pelo French Quarter, subindo uma ruela estreita e descendo outra...
STELLA - E você nunca andou nesse bonde?
BLANCHE - Ele me trouxe aqui...onde não me querem e onde tenho vergonha de estar...

Apesar de parecer pudica, Blanche também é um ser muito sexual, como podemos ver nas interações dela com Mitch e com o menino jornaleiro e até com Stanley. A vida inteira Blanche tentou esconder essa sua faceta. A vida secreta e promíscua que vivia em Laurel é um exemplo disso, além do fato "discreto" dela beber escondido sempre que pode. Até chegar em New Orleans, ela tinha certeza que mantinha isso sob controle, que podia "se dividir" em dois: uma era a Blanche perfeita e de boa índole, que aparece durante a luz do dia e para a maioria das pessoas. A Blanche que precisa de amor e cuidados, que busca o que a sociedade tem de melhor; a outra é a Blanche da noite, que sai com muitos homens e pode fazer o que bem entender. Essa Blanche também usa o sexo como meio de conseguir o amor e a atenção que ela tanto necessita. Quando chega na casa de Stella, tudo isso muda, pois encontra uma coisa que vai fazer a "Blanche perfeita" balançar: Stalney.

Stanley versus Blanche

O aspecto mais interessante da história, na minha opinião é a batalha travada entre Stanley e Blanche. Com uma primeira leitura superficial, parece que os dois se odeiam e vão lutar até a morte. De fato, os dois vão lutar até a morte de um ou de outro, e o que torna isso tão suculento é que, em ótimas montagens, você consegue sentir que a Blanche tem grandes chances de ganhar. A luta é tão intensa, que o final não pode acabar de outro jeito sem ser trágico. Tennessee Williams disse que "Blanche é um tigre. Tigres extremos são destruídos, não derrotados."

O que a primeira vista parece ódio e empatia dos dois lados, com uma leitura mais atenta se revela muito mais do que isso. Como já desenvolvi acima, os dois podem ser considerados deuses, dois poderes muito fortes que vão bater de frente. Stanley é o animal fora da jaula, o homem másculo que não liga pra nada, forte, bonito, sensual, beberrão e com uma intensa força sexual. Blanche tem a mesma energia (é até beberrona que nem Stanley!), mas dentro da jaula. Ela se apresenta como um animalzinho indefeso que precisa dos cuidados de outros. Desde o começo há uma tensão sexual forte entre os dois, e eles se irritam um com o outro por acharem que são completos opostos, mas na verdade é por serem muito parecidos. Identificando muito de si em Stanley e mal conseguindo conter o desejo, Blanche começa a não ter escapatória de seu "verdadeiro eu". Stanley é o que Blanche sempre quis, mas nunca poderia admitir para si mesma, pois vai contra tudo o que ela foi treinada para querer.

Dizem que amor e ódio são duas caras da mesma moeda e, se amor leva a uma relação intensa, ódio também. A batalha dos dois culmina em uma das cenas mais polêmicas de todos os tempos. Stella está no hospital pois está dando à luz e Stanley volta para casa para encontrar uma Blanche à beira de um ataque de nervos, fantasiada com suas ilusões depois que qualquer esperança na realidade já havia lhe abandonado. Ele diz que vai vestir o pijama de seda que só veste em ocasiões especiais, como sua noite de núpcias, e que quando ligarem avisando que seu filho havia nascido, ele rasgaria o pijama e acenaria como uma bandeira. Os dois estão sozinhos em casa. Stanley confronta Blanche com todas as suas mentiras e ela tem a oportunidade de fugir, mas não foge. Ele se põe entre ela e a porta, falando que se ela quer ir embora, pode ir. Ela está totalmente indefesa. Ele sorri e diz "Mas, pensando bem...até que pode não ser má ideia...interferir..." Ela o ameaça com uma garrafa, ele duvida que ela o machuque e pula em direção a ela gritando "Tigre...tigre! Larga esse gargalo! A gente tinha esse encontro marcado desde o início!". As rubricas para o fim da cena são:

Ela geme. O gargalo quebrado cai no chão. Ela cai de joelhos. Ele a pega no colo, uma figura inerte e a leva para a cama. Ouve-se a todo volume o trompete, intenso, sensual, apaixonado, e a bateria que tocam no Four Deuces.

A cena é polêmica porque dá a entender que Blanche foi estuprada por Stanley. Williams não deixa isso totalmente claro, mas é a opção mais plausível. Porém, as questões que ficam são: foi realmente um estupro? Será que a Blanche não queria isso "desde o começo", como botou Stanley? Será que o que ela mais queria não era ser tomada de um jeito animalesco? Por que será que ela não fugiu?

Seja como for, essa é a gota final na batalha interna de Blanche, que acaba destruída e "louca", como meio de negação da realidade. Aliás, não é a única que nega a realidade. Quando questionada por sua vizinha sobre a decisão de considerar Blanche louca e interná-la, Stella diz "Eu não poderia acreditar na história dela e continuar vivendo com Stanley." No fim, Blanche é levada por um médico e uma enfermeira para o hospício, onde solta sua famosa frase "Eu sempre dependi da bondade de estranhos."

Curiosidade: realmente existiram os bondes "Desejo" e "Cemitério" em New Orleans.

5 comentários:

  1. Nossa, ótimo texto. Vai me ajudar muito na prova. Abraços.

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  2. Nossa, ótimo texto. Vai me ajudar muito na prova. Abraços.

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  3. Melhor texto que eu vi até agora relacionando o autor a obra. Vai me ajudar bastante na resenha critica!

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  4. Parabéns. Ótimo texto.
    Me ajudou ainda mais entender e desvendar alguns mistérios do filme ..

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